📌 FELIPA CRÍTICA: CORPO DE VIDRO
Criada e escrita por Wagner Jales e exibida pela ONTV, Corpo de Vidro estreou com um primeiro capítulo impactante, que não poupa o espectador de choques visuais e emocionais.
O primeiro capítulo de Corpo de Vidro, escrito por Wagner Jales, deixa claro desde seus instantes iniciais que não pretende oferecer ao público uma narrativa confortável. A opção de começar a trama dentro de uma delegacia, já no rescaldo de uma violência sexual, é corajosa e eficaz, pois instala imediatamente a atmosfera de tensão e desespero que permeará toda a história. Essa escolha dramatúrgica é, sem dúvida, um dos grandes acertos do capítulo: não há preâmbulo morno, não há enrolação. O espectador é jogado de cabeça no horror e na vulnerabilidade da protagonista, Lavínia.
Mas, se a proposta é impactar, a execução às vezes exagera na busca pela intensidade. A festa na Praia do Amor, por exemplo, é descrita com tanto detalhamento técnico — palmeiras, tecidos coloridos, sons, corpos sarados, drogas circulando — que a narrativa corre o risco de se arrastar, como se o autor estivesse mais preocupado em exibir a plasticidade da cena do que em fazer a história avançar. Esse preciosismo visual funciona no audiovisual quando há câmera e edição para equilibrar, mas, em texto, o excesso de minúcias pesa. O resultado é que a suposta efervescência da festa acaba soando mais artificial do que espontânea, como se fosse uma vitrine de diversidade cuidadosamente montada para impressionar.
Ainda assim, a construção da liberdade de Lavínia antes da violência é bem pensada. O beijo com Natália, a escolha consciente de não se envolver com homens por receio dos abusos, a brincadeira juvenil à beira-mar — tudo isso cria um contraponto poderoso à brutalidade que se segue. O problema está na cena do estupro em si: longa, explícita e insistente. O autor parece acreditar que só o choque gráfico é capaz de transmitir a dor, quando muitas vezes o silêncio, a sugestão ou o olhar da vítima já seriam suficientes para devastar o público. O risco aqui é a espetacularização da violência sexual, que, em vez de sensibilizar, pode repelir ou reabrir feridas desnecessárias em quem assiste.
Outro ponto que escorrega é a utilização de músicas pop comerciais — Ariana Grande, Madison Beer, Malta. Em um texto que tenta construir uma atmosfera atemporal de trauma e denúncia social, essas escolhas soam como produto de marketing enfiado goela abaixo. Nada envelhece tão rápido quanto a playlist de uma novela. O recurso poderia ser substituído por sonoplastias originais ou descrições menos específicas, para evitar a sensação de que estamos em uma versão publicitária de um trauma.
Passada a violência, o texto volta a acertar em cheio na crítica social. O delegado Jaime é a personificação da insensibilidade institucional: revitimiza Lavínia, duvida de sua versão, coloca em xeque sua lucidez. Pode-se argumentar que esse perfil de autoridade descrente é um clichê, mas a verdade é que se trata de um clichê trágico — porque ainda é real demais. A cena de Lavínia no IML, despida de dignidade e fotografada como evidência, é seca e perturbadora, talvez a mais eficiente de todo o capítulo, justamente por não precisar recorrer ao excesso.
O banho desesperado de Lavínia, tentando esfregar a pele até se ferir, é igualmente devastador. Aqui, a dor é mostrada pela intimidade, não pela exposição, e funciona com muito mais força do que a cena do crime em si. Da mesma forma, os traumas posteriores — o grito ao ser tocada por um garçom, a dificuldade em permanecer em locais cheios — são retratos realistas e dolorosos das consequências da violência. Esses são os momentos em que Corpo de Vidro encontra sua potência verdadeira: não no espetáculo do horror, mas na banalidade cruel de suas marcas.
Infelizmente, a novela também tropeça quando tenta equilibrar o peso do drama com núcleos paralelos mais leves. O flerte entre Ian e Mayke, ainda no hotel, surge abruptamente depois de sequências de violência e luto. A intenção é clara — dar respiro ao público —, mas o resultado é uma quebra brusca de tom que beira a indelicadeza. Parece que, em um universo onde uma personagem ainda sangra de dentro para fora, outros já estão testando roteiros de comédia romântica adolescente. Essa dissonância pode afastar a empatia e causar estranhamento.
O grande clímax do capítulo, no entanto, está reservado para o núcleo familiar. O reencontro de Lavínia com os pais e a reação da mãe, Eva, funciona como um soco no estômago. A culpabilização da vítima dentro da própria casa, o julgamento moral travestido de preocupação, é um retrato incômodo e realista do machismo doméstico. Se o delegado representa o descaso institucional, Eva simboliza a violência simbólica da sociedade, que ainda insiste em responsabilizar mulheres por crimes cometidos contra elas. A cena é dura, dolorosa e memorável — aqui sim, um final à altura de um grande capítulo. A metáfora visual do vidro trincado, congelando o rosto de Lavínia em desespero, dá identidade à obra e sintetiza sua proposta com elegância.
No balanço, Corpo de Vidro estreia com ousadia, mas não sem riscos. É uma narrativa que tem muito a dizer sobre violência de gênero, revitimização e injustiça social, e que constrói bons personagens para sustentar esse discurso. Mas também é um texto que por vezes se perde no excesso: excesso de descrições, excesso de exposição gráfica, excesso de elementos “moderninhos” que soam mais como truque do que como organicidade. Falta-lhe, em alguns momentos, a coragem da sutileza.
Mesmo assim, não se pode negar que o capítulo cumpre sua função: choca, mobiliza, incomoda e deixa claro que a novela não veio para entreter de maneira superficial, mas para jogar luz em feridas sociais profundas. Se os próximos capítulos conseguirem dosar melhor intensidade e contenção, Corpo de Vidro pode se firmar como uma obra relevante, que não teme encarar de frente aquilo que a sociedade insiste em varrer para baixo do tapete.
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