📌 FELIPA CRÍTICA: NOÇÃO DO PERIGO

Toda novela carrega em seu primeiro capítulo a promessa de um universo novo: personagens, segredos a serem desvendados e conflitos que, se bem conduzidos, grudam no público como trilha de abertura. No caso da nova novela de Selma Dumont, ambientada na charmosa Diamantina, a promessa é clara.


Se Diamantina é conhecida por seu casario colonial, seu céu azul cortado pelas montanhas e seu passado de brilho e contradição, é curioso — e quase irônico — que o primeiro capítulo da novela de Selma Dumont traga à luz uma narrativa tão carregada de sombras, rivalidades e reações dramáticas que beiram a esquizofrenia de folhetim das 21h sem o equilíbrio da finesse.

Sim, é verdade: o capítulo de estreia tem ritmo, tem estrutura, e apresenta personagens definidos — com destaque para a vilã Alice, construída com requintes de crueldade dignos de novela mexicana em seu estado mais puro. Mas se há algo que resume esse capítulo, é a falta de sutileza. O texto acredita tão pouco na inteligência do espectador que opta por despejar informações através de diálogos expositivos, como se os personagens estivessem se explicando para uma plateia de amnésicos. E isso, num cenário tão visualmente rico quanto Diamantina, é um desperdício lamentável.

Comecemos pelo início: a cena de abertura, com drones sobrevoando a cidade e Prefixo de Verão tocando, promete uma novela solar, nostálgica, quase poética. Em vez disso, o que recebemos é um amontoado de situações costuradas com certa pressa e diálogos que soam escritos por uma inteligência artificial programada para misturar Malhação, Verdades Secretas e A Usurpadora numa mesma panela. O resultado? Um caldo raso, que finge profundidade e entrega caricatura.

Alice, a antagonista, é o grande trunfo do texto. É venenosa, manipuladora e absolutamente perturbada — o que poderia ser ótimo, não fosse a pressa do roteiro em transformá-la numa vilã padrão com todos os estereótipos possíveis: fala sozinha, pragueja olhando para o nada, esconde cartas de tarô, tem surtos em matas e anda de pijama à meia-noite conspirando com pen drives alheios. A construção da vilania não é gradual; ela é jogada com tanta força no colo do espectador que o impacto emocional se dissolve em teatralidade. 

O casal Talita e Rodolfo é funcional, mas raso. Os dois flutuam entre o clichê do romance juvenil e a ingenuidade de quem nunca viu uma novela na vida. Rodolfo, em especial, parece um personagem que só existe para servir de objeto de desejo, sem personalidade, sem profundidade, e com a expressão emocional de um pão de forma. A cena em que ele presencia Alice nua e sai em choque parece mais escrita para virar meme do que para mover a trama com coerência. Falta conflito interno, falta dilema, falta verdade.

Já Talita, a mocinha, é tratada como o centro do universo — todos giram ao seu redor, a desejam, a invejam, a protegem. Seu projeto secreto é um mistério envolto em bajulação: ela mesma o descreve como superior aos projetos de Harvard, e nenhum personagem parece achar isso narcisismo. A novela até tenta dar a ela uma história densa — com um passado injusto e uma prisão marcada por racismo estrutural implícito —, mas trata esse passado com a mesma superficialidade de quem cita um trauma só para justificar porque hoje a protagonista é “forte”.

As cenas que se passam na cachoeira, embora visualmente promissoras, se estendem além do necessário e trazem diálogos que confundem naturalidade com banalidade. É como se a autora tivesse se apaixonado tanto pelo cenário que esqueceu que a história precisa andar. A tentativa de dar leveza e descontração aos jovens soa forçada, com piadas que variam entre o pastelão e o “meme pronto”.

Mas o capítulo não é um desastre completo. Há momentos que funcionam bem, especialmente quando o roteiro resolve pisar no freio e explorar relações humanas com mais intimidade. A sequência no banheiro entre Giovanna e Camila, por exemplo, é uma pequena pérola em meio à avalanche de clichês: um encontro honesto, delicado, com duas mulheres fragilizadas, dividindo suas dores e, talvez, abrindo caminho para um romance que pode render. A forma como a sexualidade de Giovanna é tratada também é um respiro de autenticidade num episódio que, até então, parecia mais preocupado com reviravoltas baratas do que com profundidade emocional.

Outro ponto positivo está na tentativa — ainda que tímida — de integrar elementos da religiosidade afro-brasileira (com as imagens de orixás e a reza de Kátia), sinalizando que a novela pode, nos próximos capítulos, explorar dimensões espirituais e culturais menos comuns no horário nobre da web. É uma promessa ousada, que pode enriquecer a narrativa — se for bem trabalhada e não cair em estereótipos de “mãe de santo vidente”.

Mas no geral, o primeiro capítulo de Selma Dumont é como um prato com ingredientes de qualidade, mas mal temperado e servido antes de estar pronto. Tem brilho visual, tem personagens com potencial, mas sofre com um texto que subestima o espectador, vilania acelerada, diálogos engessados e uma fixação por “tramas secretas” que ninguém sabe exatamente o que são. Falta polimento, falta timing e, acima de tudo, falta confiança no próprio universo que a novela tenta construir.

Se essa é só a abertura do folhetim, a esperança é que nos próximos capítulos a autora troque a exposição excessiva por sutileza, o choque gratuito por construção gradual, e o drama encenado por emoção genuína. Senão, a novela corre o risco de ser como a cachoeira de sua primeira cena: bonita por fora, mas rasa onde mais importa.


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