📌 FELIPA CRÍTICA: PEDE-SE JUSTIÇA
A novela “Pede-se Justiça” exibida na Rananle Webs e escrita por Anderson Xymmer, é um roteiro ambicioso, que pretende traçar um amplo retrato das desigualdades sociais, dos abusos de poder e dos conflitos identitários do Brasil contemporâneo.
“Pede-se Justiça” é um roteiro que se propõe a ser uma denúncia contundente das mazelas sociais brasileiras e acaba se tornando um amontoado de clichês empilhados sobre uma estrutura trôpega, arrastada e, por vezes, sofrivelmente constrangedora. É como se o autor tivesse decidido colocar em um único roteiro todos os problemas do Brasil, da invasão de terras indígenas ao adultério na elite, passando por violência doméstica, racismo, corrupção, crises familiares, prostituição e desigualdade social, mas esquecendo de trazer o principal: coesão narrativa e domínio dramático.
A intenção, claro, é louvável. Há um desejo palpável de tratar de temas sérios e urgentes. E nesse ponto, Anderson Xymmer merece reconhecimento: ele quer falar de dor real, de injustiça sistêmica, da máquina opressora que esmaga os mais vulneráveis, especialmente os povos indígenas, as mulheres pobres, os trabalhadores invisíveis. Mas esse desejo nobre tropeça nas próprias pernas e se espalha por um texto que parece mais um grande panfleto emocional do que uma peça de dramaturgia pensada, construída e polida.
O roteiro parece fruto de uma maratona insana de novelas bíblicas da Record, temperada com fragmentos desconexos de O Rei do Gado, Amor à Vida e panfletos audiovisuais do MST. O problema é que tudo isso foi jogado num liquidificador sem tampa — e o resultado espirra, desordenado, para todos os lados, deixando um rastro de excessos, clichês e falta de coesão. A estrutura narrativa é inchada, com mais subtramas do que a última temporada de Game of Thrones — e nenhuma delas desenvolvida com a densidade que os temas exigem.
O personagem Salim, por exemplo, é apresentada como um menino branco criado por indígenas e depois lançado à cidade grande. O arquétipo do “estranho no ninho” poderia render reflexões profundas sobre identidade, pertencimento, mestiçagem e cultura. Mas não. Ele vira uma espécie de Macunaíma invertido, sem carisma, sem desenvolvimento, e com falas que misturam forçadamente o sotaque interiorano a uma visão maniqueísta digna de encenação escolar.
Enquanto isso, a elite branca da capital maranhense é retratada como um zoológico de caricaturas: a perua fútil, o marido traído, a matriarca ultrapassada, a juíza gélida que governa a casa como um tribunal da Inquisição. É como se a crítica social fosse uma colagem de memes da internet encarnados em gente de carne e osso. O diálogo entre essas figuras? Artificial, expositivo, quase sempre risível. Parece que ninguém conversa — só despeja falas como se lessem cartazes de protesto em um ensaio de teatro comunitário.
Nessa produção, tudo é jogado com o peso de uma tragédia grega. As situações dramáticas são tratadas com a delicadeza de um rolo compressor. A violência doméstica? Repetitiva, sem nuances, sem ruptura, com personagens que gritam e choram num ciclo de sofrimento digno de Casos de Família. A prostituição? Reduzida a cenas que parecem mais escritas para chocar do que para emocionar. Os diálogos beiram o folhetinesco mais raso.
As cenas mudam de tom como quem troca de canal. Em um momento há genocídio indígena; no seguinte, uma adolescente mimada reclama do batom errado. E no meio disso tudo, o roteiro ainda tem a pachorra de tentar inserir trilhas sonoras populares como “Quem vem de longe” e “Sozinho”, do Caetano, como se isso colasse emoção onde faltou construção.
É impressionante a quantidade de personagens estereotipados por página. O empresário ganancioso. A mulher submissa. O jovem justiceiro. A velha moralista. O amante canalha. A empregada sofredora. Se alguém criar um bingo de arquétipos batidos, esse roteiro é o cartão premiado. Os personagens não se desenvolvem. Eles são bonecos que representam ideias. Não vivem, não mudam, não surpreendem. Até mesmo quando o autor tenta subverter os papéis (como Salim sendo adotado por um velho rico), a coisa se resolve de forma forçada, sem construção prévia que torne crível.
E o que dizer do casal Karla Beatriz e Camilo? Um desfile de frases pasteurizadas, cenas de sexo gratuitas e conflitos emocionais vazios. Quando a personagem é flagrada traindo o marido com o motorista, o escândalo soa mais cômico do que trágico e não por intenção, mas por excesso. É um roteiro que confunde impacto com barulho.
Apesar do caos, há momentos que deixam entrever um talento bruto. A cena inicial de Salim fugindo com os indígenas tem força simbólica e potencial poético. A denúncia do avanço do agronegócio sobre terras indígenas é relevante e bem-intencionada. A personagem Duda, embora subexplorada, mostra lampejos de sensibilidade, especialmente nas cenas em que confronta a mãe. A relação entre Marcondes e Salim, por mais mal construída que seja, carrega uma centelha de humanidade que poderia render algo interessante em mãos mais experientes.
Além disso, o roteiro toca em feridas que merecem palco: a impunidade contra os povos originários, a hipocrisia das elites, a solidão das mulheres oprimidas, a negligência afetiva nos lares burgueses. O problema é que, ao tentar abordar tudo ao mesmo tempo, o roteiro acaba tratando cada tema como uma manchete de jornal em voz alta, sem mergulhar verdadeiramente em nenhum deles.
“Pede-se Justiça" é um título que evoca urgência, clamor popular, desejo de correção histórica. Mas o que se vê é um produto dramatúrgico que precisa — urgentemente — de edição, refinamento e foco. É uma obra que quer dizer muito, mas acaba dizendo pouco. Que grita tanto que se torna ensurdecedora. Porque, no fundo, o roteiro pede justiça… mas implora por uma reescrita.
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